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Acordos e Desejos | Parte 1

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A Toca

“Neste mundo existem somente duas tragédias. Uma é não conseguir o que se deseja, e a outra é conseguir.”

Oscar Wilde

No amago de seus pensamentos, o artista Mateus se espantou com a incrível ideia que teve para colocar um fim no bloqueio criativo do trabalho que o estressava há dias. Mas algo o incomodava.

O cigarro que tinha acabado de acender já estava quase queimando seus dedos e o uísque, que sempre toma quando as coisas não estavam bem, — um costume que começou a se tornar um vício — estava quase transbordando o copo pela enorme quantidade de gelo derretido.

Tudo estava normal há um minuto. Mateus lembrava-se perfeitamente de pegar a lapiseira, uma folha de papel, sua bebida e o cigarro. Ele se sentou e encarou o papel por alguns segundos, piscou e por algum estranho motivo, horas se comprimiram em um instante. Mateus não entendeu o que havia se passado, mas antes de pensar em qualquer tipo explicação plausível para o ocorrido, ele se adiantou para colocar a ideia no papel antes que ela desparecesse de sua mente. No entanto, algo o incomodava.

Entre um traço e outro, Mateus tentava buscar algum esclarecimento, pois o relógio não mentia, ele sabia que havia sentado para trabalhar às catorze horas, mas já passava das dezoito. O artista não fazia ideia do preço que havia pagado para conseguir a inspiração, mas de alguma forma a resposta parecia sussurrar em seus ouvidos.

Quando terminou o primeiro rascunho, o celular do outro lado da sala tocou. Mateus se levantou para atender com um pouco de dificuldade, pois havia ficado inexplicavelmente imóvel por quatro hora. Aquela situação era como uma pequena farpa encravada na pele, não doía, mas incomodava. Apesar de tudo, Mateus se sentia muito bem.

A ligação trouxe a esperança que há muito ele já havia perdido. Tratava-se de um projeto que realizou há cinco anos, uma proposta que iria lhe render um bom dinheiro, mas nunca obteve retorno, pelo menos até aquele momento. Na época Mateus apostou tudo o que tinha nesse projeto artístico esperando um retorno financeiro robusto. Ele precisava muito do dinheiro, não só para pagar suas contas, mas para terminar de pagar o financiamento do apartamento que ele e sua ex-namorada estavam planejando comprar antes do casamento.

Quando se lembrou de Flávia, sua ex-namorada, Matheus sentiu novamente a angústia do rompimento atingi-lo como um soco no peito. O término mal resolvido há poucas semanas ainda era um assunto delicado para o artista. Ele recordou os últimos cinco anos, onde tudo começou a dar errado. Foi naquela época que Matheus investiu todo o seu tempo e dedicação no projeto pessoal para se tornar um artista famoso. Porém depois de todo esse sacrifício sua recompensa foi perder a pessoa que ele amava e uma frustração que o corroía.

Bastou uma ligação para colocar a vida do artista nos eixos novamente e a mensagem que recebeu de Flávia, logo em seguida o fez questionar se tudo aquilo não passava de um sonho. O recado da ex-namorada trazia uma esperança para reatar o relacionamento. Tudo desabou por cinco anos de trabalho duro sem reconhecimento. Faltava pouco para Matheus tomar uma medida desesperada de cometer um ato de violência contra ele mesmo, porém agora as coisas estavam começando a melhorar. O incomodo que estava sentido foi substituído por uma alegria que ele quase não reconhecia mais o sabor.

Mateus agradeceu, seja lá o que tivesse feito para que tudo voltasse a ter sentido em sua vida. Era inacreditável como tudo estava dando certo.

Alguns minutos depois, enquanto se arrumava para encontrar Flávia, ele se emocionou refletindo em como as coisas estavam tomando um rumo bom, pois uma ideia, um telefonema e uma mensagem o tiraram do fundo do poço. Foi lá do fundo foi que ele percebeu que a única saída era para cima.

Mateus ainda se pegava pensando, sentindo a cabeça pulsar, sobre aquele período que não percebeu o tempo passar. De alguma forma parecia que alguém tentava lhe contar a verdade, uma voz que vinha do fundo de sua mente, no entanto, ele simplesmente não consegue escutá-la. Não importava mais agora.

Enquanto se encarava no espelho para fazer a barba, Mateus sentia-se diferente, uma pessoa nova, nem parece que viveu aqueles cinco anos de dor e angústia e nem conseguia se reconhecer direito no espelho.

Se ao menos Mateus conseguisse ver a estranha figura humana entocada dentro de sua mente se debatendo e gritando desejando ter sua vida de volta, Mateus saberia que ele não passava de um impostor, pois o verdadeiro dono daquele corpo estava preso dentro de si mesmo, como um animal escondido em sua própria toca.

O verdadeiro Mateus voltou a se sentar no espaço escuro e fechado com uma única tela a sua frente, que mostrava uma pessoa vivendo os melhores momentos da vida dele. No fundo da toca escura ele se recordava do ser indecifrável que apareceu quando o artista estava disposto a dar tudo, em troca de uma ideia para resolver aquele trabalho que o estressava há dias.

Mateus lembrava-se muito bem da oferta daquela criatura com um sorriso cínico:

“Eu lhe darei o que precisa, em troca quero que você aprecie a sua vida”.

Continua…

Acordos e desejos | Parte 2


Artistas:

Ilustração da capa: @jefflourenso
Ilustração do texto: oficina_do_sinistro

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