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Ensaio Sobre o Purgatório

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“Mais uma noite sem sonhos” pensou o homem sentado na cama. Fazia pouco mais dois anos que ele fora dispensado do serviço militar após uma missão complicada, violenta e cheia de baixas. Os diversos traumas quase o deixaram louco, mas de volta ao lar, ele finalmente se sentia em paz — pelo menos era no que ele queria acreditar.

O homem acordava todos os dias com uma estranha sensação. Sentia um alívio ao abrir os olhos, como se tivesse despertado de um pesadelo, no entanto, ele tinha certeza de que não havia sonhado. Pensava que poderia ser alguma sequela dos horrores que enfrentou na missão.

Muitos dos seus companheiros não tiveram tanta sorte ao retornar do combate. Dois deles se afogavam no álcool. Outro se envolveu com jogos e perdeu tudo que tinha. Também ficou sabendo que uma colega dissolveu sua família por conta de relacionamentos extras conjugais. Entre seus amigos, um que teve o pior dos destinos. Ele foi capturado e torturado durante a missão e desde que foi resgatado passou por vários tratamentos psiquiátricos. Por fim, ele passou seus dias sem falar com ninguém, trancado numa clínica.

Todos os dias, o homem seguia a mesma rotina desde que regressou daquele inferno. Levantava-se cedo, tomava seu café da manhã e saía para correr na pista feita para esse tipo de atividade ao lado da estrada que ligava o seu bairro ao polo industrial da cidade.

Naquela manhã silenciosa, com uma fina neblina que deixava a paisagem cinza e morta, um estranho som quebrou o silêncio do seu ritual matinal. Era muito raro encontrar com alguém tão cedo na rua, mas conforme avançava, o homem começou a identificar aquele som. Parecia que alguém estava chutando algo.

Alguns metros à frente, ele viu dois homens pelo nevoeiro: um era magro e usava um moletom bege com capuz, o outro, mais alto e forte dava pontapés em algo no chão. Ao se aproximar, o homem viu o que aquele grandalhão chutava. Era uma terceira pessoa que estava encolhido no chão, tentando inutilmente se proteger. Sem pensar duas vezes, o ex-soldado interveio chamando a atenção dos agressores. Porém, quando eles se viraram, o homem, por um instante, sentiu seu corpo congelar ao ver aquelas monstruosidades.

Os dois tinham olhos negros, sem o branco, e com pupilas verticais amareladas que parecia brilhar como chamas num ritual infernal. Ambos cobriam o rosto com um pedaço de couro que parecia pele humana, com retalhos de bordas avermelhadas na região dos olhos. O mais alto avançou e sacou um revólver.

O homem fugiu dos tiros o mais rápido que pode e se escondeu atrás de um grande poste. Apesar de algumas balas terem raspado por sua pele, ele conseguiu se proteger. Quando percebeu que a munição do atirador acabou, o ex-soldado saiu da proteção para o revide, mas viu o segundo agressor puxar uma grande faca rustica de caça. O homem não podia arriscar, aquelas coisas pareciam fortes, além de estarem armados.

Enquanto fugia, ele avistou uma antiga fábrica e decidiu mudar de abordagem. Pensou em se esconder e esperar a oportunidade certa para separar os dois e derrubá-los, um por vez.

Ao entrar na fábrica, ele se deparou com um enorme espaço aberto e abandonado. Isso era estranho, pois ele tinha certeza de que aquele lugar ainda operava, mas agora estava totalmente vazio. Não tinha máquinas, empilhadeiras ou paletes. Naquele local, só havia uma cadeira com as armações enferrujadas e sobre ela um objeto estranho.

Era um aparelho metálico, de cor rubra. Tinha a forma de uma lua minguante e possuía tiras de couro nas extremidades com fivelas. Também havia uma alavanca ligada a uma engrenagem pequenas que corria por um trilho no formato do objeto, parecia que aquela coisa era feita para colocar na cabeça de uma pessoa.

Antes que o homem pudesse manuseá-lo, ele recebeu uma forte pancada na nuca. Não foi forte o suficiente para desacordá-lo, porém foi o bastante para desnortear seus sentidos. Logo em seguida, ele e foi arrastado até uma das salas próximas. Quem o arrastou deixou a porta entre aberta, de onde ele viu as duas coisas carregando a pessoa que foi agredida. Quando tentou inclinar a cabeça para ver mais a porta foi fechada. A sala era pequena e estava suja, havia uma pequena janela gradeada com o vidro quebrado com alguns cacos no chão.

O homem se revirou pelos cacos de vidro tentando se levantar com muita dificuldade. Do outro lado da sala, ele ouviu gritos, provavelmente do pobre coitado agredido. A pessoa implorava por liberdade e perguntava o motivo de toda aquela violência, mas foi o ranger do metal, daquele estranho aparelho, que o fez chorar desesperadamente pedindo por piedade.

O ex-soldado pegou um caco de vidro grande, era a única arma que tinha a disposição para se defender. Depois de um longo silêncio, apesar dos gemidos da vítima, o homem ouviu o ranger do metal mais uma vez, em seguida veio um grito desesperado, um grito de horror, o grito de uma pessoa sendo torturada. A alma do ex-soldado congelou ao imaginar a cena daquele estranho objeto no rosto da vítima e com o trilho da engrenagem encaixado nos dentes dele. Agora ele sabia para o que servia o objeto.

A cada som que o aparelho fazia, o homem ouvia as engrenagens estourando, um por um, os dentes daquela pobre pessoa, e ele sabia que seria o próximo. Com o vidro em suas mãos, ele encarou seu reflexo de pânico, aquele era o único jeito de escapar de um destino pior que a morte. Com um movimento rápido o brilho do vidro cravejou no seu pescoço.

“Mais uma noite sem sonhos” pensou o homem sentado na cama.

Fim.

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