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Sob o brilho fugaz da lembrança

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Uma pequena ilha flutuava no vácuo de um espaço sem estrelas. Nas margens desertas escorria a fina areia para a imensidão do vazio. Apesar de toda a escuridão que a cercava, a ilha era iluminada por uma fonte de luz da qual não havia um ponto de origem, mas que a aquecia como o sol. Nem sempre foi assim, pois Daniel, o único habitante daquela ilha, ainda lembrava do céu azul, das águas salgadas e cristalina do mar e do horizonte onde esses dois gigantes se encontravam.

Desde que a escuridão tomou a ilha, Daniel sentia-se preso num amontado de vegetação e areia, isolado como um ator sozinho no palco escuro do teatro, sendo iluminado apenas por um holofote distante. A ilha sempre se mantinha iluminada, por isso não havia noites, o que dificultava sentir a passagem dos dias.

Mesmo com essas adversidades, Daniel conseguiu manter a força de vontade sobrevivendo como podia, no entanto, ele já não lembrava da motivação que o mantinha vivo naquele lugar por tanto tempo.

As árvores sempre sustentavam bons frutos, e um lago, próximo do local onde Daniel costumava dormir, fornecia uma fonte de água limpa. De alguma forma a ilha cuidava dele. E mesmo tendo o necessário para sobreviver, ele sentia falta de companhia, de alguém para conversar e interagir.

Era mais um dia, como tantos outros, porém Daniel notou pegadas estranhas na areia. Um pouco assustado, porém esperançoso para encontrar outra pessoa, Daniel as seguiu.

Próximo da praia, de onde a areia escorria para a escuridão, Daniel encontrou um homem sentado no chão olhando para aquela escuridão. Daniel pensou um pouco antes de se aproximar: quem poderia ser aquela pessoa e por que Daniel nunca o tinha visto antes?

Um pouco tímido e temendo pelas intenções daquele homem, Daniel aproximou-se e o cumprimentou. O homem retribuiu com aceno de cabeça e em seguida se apresentou. Seu nome era Joaquim e parecia ser simpático.

Em pouco tempo os dois viraram amigos. Porém, Daniel ainda estranhava a presença de Joaquim na ilha, depois de tanto tempo sozinho explorando aquele lugar era difícil acreditar haver mais alguém preso lá com ele, entretanto, a nova companhia era muito bem-vinda.

Joaquim parecia entender muito sobre aquela ilha e dizia já ter passado por essa situação muitas vezes com outras pessoas que se perdiam em ilhas parecidas como aquela, mas mesmo com suas explicações, ele mantinha um mistério sobre o propósito daquele lugar. Joaquim dizia ser uma espécie de guia: mas para qual finalidade perguntava-se Daniel.

Mesmo sem esclarecer todas as dúvidas de Daniel, ambos começaram a conviver amigavelmente na ilha. Joaquim, sempre muito prestativo, facilitava ainda mais a vida de Daniel, sempre preparava as refeições, buscava água e até fazia roupas com a vegetação do local.

Certo dia, Joaquim mostrou uma foto para Daniel, uma foto de uma bela mulher que Daniel admirou por muito tempo, mas não a reconhecia de nenhum lugar, mesmo tendo a impressão de que já a havia visto. Joaquim parecia triste, ao contar a história sobre aquela mulher.

Ela se chamava Amanda e Joaquim foi o guia dela. Amanda havia se perdido há muito tempo em uma ilha muito parecida com a de Daniel. Por algum tempo o marido de Amanda tentou ajudá-la, tentou trazê-la de volta a qualquer custo, mas com a chegada da escuridão, tudo se tornou mais difícil. A escuridão vinha para todos, mais cedo ou mais tarde, e quando isso acontecia, Joaquim chegava à ilha para ajudar quem fosse. Mas no fim, mesmo a forte luz que iluminava a ilha com aquele brilho misterioso acabava se apagando. Foi o que aconteceu com Amanda, que foi sendo engolida pela escuridão e para o esquecimento. Era uma história triste que Joaquim contava com muito pesar.

Em seguida, Joaquim contou que o senhor Monteiro, o marido de Amanda, também estava passando por aquela situação, assim como Daniel. Um dia a luz apagaria assim como tudo no mundo que um dia encontra o seu fim no esquecimento. Não se tratava de uma punição, explicou Joaquim, era um processo que acontece com todos que vivem. Pessoas se perdiam em ilhas particulares e aos poucos começam a esquecer de como o mundo é, de como foi e de como poderia ser.

Daniel não sabia o que fazer, ele já não lembrava de como chegou na ilha e o que havia acontecido antes em sua vida, muito tempo se passou — pelo menos era nisso que Daniel acreditava. Desesperado, Daniel suplicava pela salvação para voltar a ser o que quer que ele tenha sido um dia e, retomar sua identidade que agora parecia toda ela incerta. Triste, Joaquim apenas tentava consolar o amigo que pouco a pouco perdia as esperanças de voltar a ver o mundo como ele era.

Para o ser humano, aquilo que pode provocar sua alegria e dor, aquilo que ele tem de mais preciso e que o difere dos animais, todo aquele universo imaginado e criativo onde moram as angústias e preocupações, mas também alegrias e amores, todo aquele espaço vasto e sem limites vira uma ilha que perde o próprio brilho aos poucos com o tempo.

Tempos depois, Daniel notou que a ilha parecia menor: mas será que ela já foi maior? Daniel já não sabia dizer. Joaquim continuava junto de seu amigo que cada vez mais se distanciava, cada vez mais perdido naquela ilha que não mostrava mais seus caminhos. Aquela minúscula ilha ainda reluzia como a única estrela do vasto espaço, que pouco a pouco perdia a sua luz.

Daniel caminhava sozinho pela praia. Ele se sentia muito só naquela minúscula ilha, mas ele lembrava que nem sempre foi assim, havia alguém com ele, um amigo ou amiga, mas não conseguia ter certeza. Daniel não sabia mais o que sentir; raiva e alegria se embaralhavam naquele pequeno banco de areia, que foi tudo o que havia sobrado da ilha: mas aquilo realmente era uma ilha?

No meio do nada um homem questionava-se sobre seu nome, sobre quem era e onde estava. Não havia nada nem ninguém, apenas uma consciência tentando entender o que estava acontecendo. Naquele vasto espaço o homem viu um pequeno ponto luminoso. Ele caminhou, sem saber onde pisava, para aquele ponto brilhante. Ao chegar ele viu a fotografia da mulher mais bonita do mundo para ele e suspirando enquanto vertia lagrimas de seus olhos para a foto de sua esposa. Ao tocar a fotografia, aquelas singelas lagrimas iluminaram todo o vasto universo antes de se apagar totalmente.

Na cama do hospital, o senhor Daniel Monteiro fechava os olhos lentamente enquanto deixava cair sobre o peito a última lembrança que conseguia ter sobre sua queria Amanda. 

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