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Talnor – Um estranho no navio | Parte 1

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Nos traiçoeiros mares ao sul de Islet navegava o capitão Roger em busca de um antigo artefato de poder abandonado pelos deuses. A lenda falava sobre um navio dourado e indestrutível que disparava fogo de seus canhões. A embarcação foi feita por Apolo e entregue a seus devotos, para que eles espalhassem a luz do dia pelos quatro cantos do mundo. Mas os devotos abusaram do poder da embarcação, conquistando reinos e reivindicando o domínio dos mares. No entanto, Zeus os puniu fazendo com que fossem consumidos por sua própria ganância. As lendas ainda dizem que o navio dourado ainda flutua nos mares, pois nada no mundo antigo teve poder para afundá-lo.

Para os homens dos novos tempos, isso não passava de mais uma lenda para ensinar moral e costumes antigos. Para os sacerdotes dos antigos deuses, eram registros dos tempos idos. Mas para os caçadores das antigas relíquias abandonada pelos deuses, a embarcação dourada era tão real quanto os raios do sol, e estava ao alcance da determinação dos homens de fé. Este era o caso do cruel capitão Roger, o pirata mais temido da encosta arcaniana. E seu navio, o Santuário Vermelho, tornou-se o símbolo da destruição e morte.

Roger usava um chapéu da antiga marinha sacerdotal, vestia roupas finas para disfarçar a aparência truculenta e marcada por anos de trabalho duro e trapaças. Ele era alto, tinha os ombros largos e as costas arqueada. Seu rosto, com pequenas cicatrizes, sustentava um grande nariz adunco e um bigode grosso que se ligava as costeletas. Tinha o olhar autoritário e sua postura impunha respeito e medo. Roger se tornou um perigoso pirata, pois foi um oficial da marinha do sumo sacerdote Ikan. Por conta disso, ele tinha um vasto conhecimento das rotas dos mercantes e sabia como e onde emboscá-los. Além disso, ele tinha o conhecimento necessário para fugir dos olhos atentos da marinha sacerdotal. Muitos foras da lei se sentiam honrados em servir o grande pirata, mas outros tantos se arrependiam ao embarcarem no Santuário Vermelho.

A obsessão do capitão de encontrar o navio dourado, obrigava a tripulação a trabalhar duro para manter o Santuário Vermelho num curso perigoso e pouco explorado. Há dias o mar mostrava sinais de agitação com nuvens densas no horizonte. Em todo canto do navio, os tripulantes cochichavam sobre o desaparecimento dos navios que também buscavam relíquias naquelas águas, mas ninguém ousava afrontar Roger sobre suas decisões.

Falcor, o segundo imediato, observava o capitão com desprezo, pois os delírios de Roger poderiam destruir o Santuário Vermelho e toda a tripulação por causa de uma lenda estúpida. Todo o poder e respeito que o Santuário Vermelho conquistou durante tantos anos de saques seria descartado por um lunático cruel. Falcor se considerava um líder melhor para aqueles piratas supersticiosos, e com seus argumentos conseguiu conquistar muitos tripulantes para a o seu lado, mas ainda não era o suficiente para um motim contra o capitão que era mais temido em seu barco do que fora dele.

Desde que se juntou ao Santuário Vermelho, o segundo imediato tinha intenções de se apropriar do posto de capitão, porém duas coisas adiavam os seus planos. A primeira era o próprio capitão Roger que estava sempre atento a tudo ao redor e parecia ter olhos atrás da cabeça, a outra era Astradi, o primeiro imediato.

Astradi, assim como Roger, desertou da marinha sacerdotal, mas diferente do capitão, ele nunca teve uma posição de destaque. Astradi era habilidoso com a espada, mas também era ingênuo e incompetente. Demonstrava uma falsa eloquência irritante quando falava e era difícil imaginar um motivo para ele ter o posto de segundo em comando. Assim como Falcor, o primeiro imediato se uniu ao Santuário Vermelho com o propósito de iniciar um motim.

Astradi era um veterano no Santuário Vermelho e mesmo com sua incapacidade de convencimento, ele conseguiu a lealdade de alguns tripulantes. Ambos os imediatos sabiam dos planos um do outro, mas mesmo se unissem forças – algo que não estavam dispostos a fazer – não seria o suficiente para derrubar Roger. Por conta disso Falcor e Astradi fizeram um pacto de confidência, pois sabiam que se o capitão começasse a suspeitar de um motim, seus olhos atrás da cabeça ganhariam lunetas. E assim o navio se dividia entre a facção de Falcor, os amotinados de Astradi, os leais e tementes a Roger e um prisioneiro amarrado ao mastro na proa do navio.

O prisioneiro tinha uma aparência mal tratada devido a suas condições nos últimos 3 meses. Ele era alto, com longos cabelos castanhos desgrenhados e tinha uma espessa barba ressecada. Ele parecia ser forte apesar de magro e seus olhos negros brilhavam de raiva com promessas de destruir aos seus captores. Falcor sentia o instinto primitivo daquele homem transbordar pelo ar, como se fosse um animal selvagem à espreita para devorar sua presa. A determinação naqueles olhos escuros o fazia perigoso, e por vezes o segundo imediato imaginava que se o prisioneiro estivesse livre, ele seria capaz de matar toda a tripulação apenas com as mãos.

Apesar do frio, o prisioneiro foi deixado apenas com a calça esfarrapada que vestia no calabouço de onde fora negociado. O motivo para isso estava relacionado as estranhas tatuagens que cobriam seu peitoral, braços e costas. Falcor sabia pouco sobre aqueles símbolos na pele do prisioneiro, mas o significado deles era muito importante para Roger que fazia questão de não revelar nada aos tripulantes. O único além do capitão que parecia saber de alguma coisa sobre aquelas tatuagens era Astradi. E em uma noite tempestuosa Falcor o indagou sobre o assunto.

– Você era um desses mercadores que só vivia pelo ouro não é mesmo? – disse Astradi com um sorriso malicioso enquanto palitava os dentes.

– Para com essa demonstração de ignorância e cuspa o que sabe rato imundo. – respondeu Falcor.

– Não precisa se irritar meu caro traiçoeiro. Aquele acorrentado no mastro é Talnor.

– E eu deveria saber quem é ele?

As gargalhadas dos piratas ao redor ressoavam pelo compartimento da tripulação, o que deixou Falcor mais irritado com a sua infeliz decisão de falar com aquele incompetente que compartilhava as mesmas crenças ridículas do capitão.

– Desculpe-me meu caro ignorante – voltou a falar Astradi se servindo de uma caneca de vinho. – Esse nosso prisioneiro é um bárbaro amaldiçoado, mas não me admira que você não o conheça.

– Por acaso ele pertencia a tribo de bárbaros que saqueou o seu navio antes de você implorar para que Roger o recrutasse?

O sorriso sarcástico de Astradi desapareceu no mesmo instante assim como as risadas de seus amotinados.

– Não só pertencia, como era o líder dos Arkovias. Mas isso foi há muito tempo – Astradi fez uma pequena pausa. – Não sei o que aconteceu a tribo, mas ouvi dizer nos templos de Ikan, que nosso prisioneiro foi enganado por um semideus que lhe arrancou a língua.  E parece que ele estava buscando vingança antes de ser preso.

– E o que significa aquelas tatuagens?

– Eu não sei ler os símbolos antigos, mas eles supostamente são capazes de rastrear vestígios dos poderes divinos. Eles emitem um brilho azul quando se aproxima de alguma relíquia. Pelo menos é o que contam. Dizem que ele conseguiu essas marcas fazendo um pacto com uma sacerdotisa para encontrar o tal semideus. Porém nosso capitão pretende usá-lo como bússola para encontrar o navio dourado de Apolo.

Falcor apenas demonstrava o seu costumeiro olhar descrente para Astradi, afinal nunca acreditou nos deuses e nessas lendas estúpidas e fantasiosas. No entanto, essa situação era uma boa oportunidade para colocar um plano em ação.

Durante a madrugada naquela mesma noite, Talnor era vigiado por um pirata enquanto outro guiava o navio cuidadosamente pela tempestade. Após algumas horas, outros dois tripulantes, fiéis a Falcor assumiram esses postos, dando espaço para o segundo imediato falar com o prisioneiro.

– Tenho uma proposta para você Talnor. Sei que não pode falar, então apenas pisque uma vez para “sim” e duas para “não”. Entendeu?

Talnor, encarando o segundo imediato com o semblante sério e piscou uma vez.

– Ótimo. Eu não me interesso por esses objetos divinos, mas o capitão tem a convicção de que você é capaz de localizar esse tal navio das lendas. Porém tenho a impressão de que essa busca só esgotara nossos recursos, e a julgar nossa atual posição ficaremos um bom tempo longe de terra firme.

Talnor ainda o encarava sério como um ídolo gravado na pedra e com olhos que refletiam um desejo selvagem por vingança.

– Sou um homem dos novos tempos, como dizem. Para mim, os deuses são alucinações dos sacerdotes e supersticiosos. Não acredito em nada disso e não faço questão de saber se a sua mudez está relacionada a isso. Mas sei que você anseia por vingança. Se me ajudar a tomar o navio, te levarei onde você deseja ir para matar quem quer que seja o seu desafeto. O que me diz? Me ajudaria a derrubar o capitão Roger?

Talnor piscou uma vez.

– Muito bem! Irei mandar que destranque os cadeados que te prendem e lhe entregará uma adaga. Amanhã meus homens estarão no convés e um chamará o capitão para vê-lo dizendo que viu as suas tatuagens brilharem. Conhecendo Roger, ele virá até você para verificar. No momento em que ele lhe der as costas mate-o. Quando começar o conflito, meus homens estarão ao seu lado, para te ajudar a matar qualquer insurgência. Entendeu?

Talnor piscou uma vez.

– Quando os meus homens vierem te soltar não pense em fugir antes do nosso trato. Estamos muito longe de qualquer pedaço de terra e você não sobreviveria nessas águas mesmo se conseguisse roubar um dos botes do Santuário Vermelho. Temos um acordo?

Talnor piscou uma vez.

– Ótimo! Gosto de pessoas de poucas palavras – riu Falcor ao deixar o bárbaro sozinho no meio da tempestade.

No dia seguinte, enquanto o sol era apenas uma pequena pérola branca brilhando no mar, Falcor foi chamado para se apresentar na cabine do capitão. Por um instante, o segundo imediato temia que Roger suspeitasse de alguma coisa, “mas não tem como ele saber do meu plano” pensou o imediato.

Falcor imaginava que Talnor já estaria livre das correntes naquele momento, mas enquanto caminhava pelo convés até a cabine do capitão, ele não viu nenhum de seus homens e isso o deixou apreensivo. Ao entrar na cabine de Roger, Falcor se deparou com Astradi num canto sentado com os pés em cima de um globo de madeira, e Roger ao centro em sua mesa olhando os mapas.

– O que tem a dizer em sua defesa imediato Falcor – a voz de Roger soou como um trovão e por um segundo Falcor congelou.

– Do que está falando capitão?

– Astradi me contou algumas verdades nessa madrugada.

– Meu capitão – o segundo imediato sentia um misto de raiva e pânico, mas preservava a calma no tom de voz – estou sendo acusado de alguma coisa?

– Traição – falou o capitão olhando para Astradi e depois para Falcor.

– O senhor realmente acredita nas palavras dele capitão? – Falcor fazia um grande esforço para não demonstrar o medo, se hesitasse naquele momento isso poderia significaria a morte. – Quem deve estar tramando algo contra o senhor é ele.

Falcor manteve-se calmo, mas por dentro estava à beira do pânico. A única saída era confrontar os argumentos de Astradi e tentar reverter a situação. Não havia nenhum aliado próximo e ele só tinha sua espada, mas não ousava sacá-la até ter certeza de que não teria alternativa. O segundo imediato não conseguia imaginar os motivos que levaram Astradi a trair o pacto, mas sabia que se tivesse que empunhar a espada, Astradi seria o primeiro a senti-la.

– Astradi me contou que vocês tinham planos para me matar e depois disputar pelo cargo de capitão.

– Então, por que ele ainda está aqui e respirando? – questionou Falcor apontando para Astradi.

– Isso é porque eu fiz um acordo com a pessoa certa ao invés de você – disse Astradi levantando-se batendo os pés no chão.

Antes de Falcor pensar em levar a mão à espada dois tripulantes entraram e o renderam.

Continua…

>> Talno – Um estranho no navio | Parte 2


Artistas:

Ilustração da capa: @jefflourenso

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