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Talnor – Um estranho no navio | Parte 2

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Falcor foi espancado, teve a mão direita decepada e foi marcado no peito a ferro quente com a marca dos escravos. Após muitas horas inconsciente, Falcor acordou acorrentado ao lado de Talnor. Astradi olhava para seu colega, agora quase irreconhecível por causa dos inúmeros ferimentos provocados pela punição de Roger, que de certa forma podia ser considerada leve comparando com o que o capitão já fez.

– Esse seria um bom momento para agradecer a fé do nosso capitão – falou Astradi demonstrando uma falsa compaixão. – Ele está tão confiante que encontrara a relíquia de Apolo que pegou leve com você.

Falcor se esforçou para tentar falar e apesar do inchaço no rosto e dos lábios cortados ele só conseguiu dizer:

– Por quê?

– Que bom que perguntou – disse Astradi dando um tapa brusco no pobre coitado. – Fiquei curioso no seu interesse pelo nosso prisioneiro, por isso montem uma vigília aqui e flagrei os seus homens tentando soltá-lo. Eu os forcei a contar o seu plano e vi uma oportunidade.

“Diferente de você, eu acredito que a embarcação dourada existe, e quando Roger a encontrar, o Santuário Vermelho não terá mais um capitão. Então foi apenas questão de convencê-lo a deixar esse navio para mim quando ele fosse o capitão do navio de Apolo. E para que ele confiasse em mim, eu revelei as nossas intenções de motim e forcei os seus homens a contarem o seu plano.”

“Uma vez que o capitão esteja num navio que não pode ser afundado ele não precisará se preocupar com traições. E assim eu comandarei o Santuário Vermelho sob a bandeira de Roger e serei um dos piratas mais temidos no mundo.”

Astradi era habilidoso, mas era muito ingênuo. Para Falcor, Astradi tinha cavado o próprio tumulo, pois em nenhum momento o primeiro imediato cogitou a possibilidade da relíquia não ser encontrada. E mesmo que Roger encontrasse o navio dourado, Astradi só receberia toda a crueldade do capitão como retribuição.

Astradi ria e se vangloriava daquele plano louco, e o segundo imediato não se conformava que aquele idiota colocou tudo a perder sem perceber as consequências. O único motivo, que Falcor conseguia imaginar para Roger confiar nas acusações de Astradi, era que o capitão já sabia sobre os planos de traição do primeiro imediato e confiava na ingenuidade dele para apontar outros traidores.

O som de algo sendo atirado ao mar atraiu a atenção de Falcor que tentou se virar para ver, mas cada movimento que fazia trazia à tona uma dor insuportável no corpo inteiro.

– Não se preocupe – voltou a falar Astradi – são apenas alguns dos seus homens sendo jogados ao mar.

Astradi ria sadicamente do rosto desfigurado de Falcor. Mas logo o sorriso do primeiro imediato desapareceu quando as tatuagens de Talnor começaram a brilhar com um azul esmorecido. Elas brilhavam apenas do lado esquerdo do corpo do bárbaro, indicando a direção.  Falcor mal podia acreditar no que estava vendo. Astradi gritou para um tripulante próximo avisar o capitão.

Quando Roger chegou a proa, não havia surpresa nos olhos dele, mas uma satisfação ríspida. Então o capitão gritou a direção para o timoneiro ajustar a rota. Mais uma vez, Falcor testemunhou os resquícios das lendas se manifestarem quando o Santuário Vermelho corrigiu o curso e junto com ele o brilho das tatuagens se moveram para o peito do bárbaro. “A minha relíquia está próxima” pensou o capitão, que exigia cada vez mais esforço da sua tripulação, mesmo que isso não fizesse o navio ir mais rápido.

 Muitos piratas que eram descrentes agora acreditavam no capitão. Já os que o temia tinham mais motivos para tal. Isso incluía Falcor que não conseguia pensar em como sair daquela situação, mas ao mesmo tempo estava curioso para ver o navio da lenda. Talnor, vendo a curiosidade aflorando no segundo imediato, o encarou e balançava a cabeça negativamente.

– Esse navio abençoado existe mesmo? – perguntou Falcor.

Talnor piscou uma vez.

– As lendas são verdadeiras afinal – falou o segundo imediato um pouco descrente ainda.

Talnor piscou duas vezes.

– O que você está querendo dizer?

Talnor não olhou mais para o pirata, apenas encarou o horizontou onde o perigo os aguardava.

Numa noite, um brilho no horizonte foi avistado. Roger tinha certeza de que era a embarcação dourada, mas Astradi o aconselhou a ter cautela. Em pouco tempo todos os tripulantes estavam apostos no convés, acendendo tochas e preparando as velas. Astradi mandou algum de seus homens se prepararem e ficarem a postos nos canhões apesar das ordens de Roger para que todos permanecessem no convés.

Em pouco tempo o Santuário Vermelho se aproximou daquela embarcação. Não havia mais dúvidas, era o navio dourada de Apolo. Ele parecia vazio, não havia velas ou bandeiras hasteadas e a luz dourada que emanava vinha dos entalhes do navio tal como as tatuagens do bárbaro que por sua vez brilhavam com tanta intensidade que era difícil para Falcor olhar para Talnor.

O timoneiro emparelho os navios com perfeição. Roger, no convés do Santuário Vermelho, se direcionava para a prancha que foi posicionada para criar a ponte entre os navios enquanto Astradi o seguia temendo que algo ruim aconteceria a qualquer momento.

– Capitão – chamou Astradi ao pé do ouvido de Roger – não é melhor mandar alguém ir primeiro, para averiguar?

Em resposta a Astradi, o punho serrado de Roger foi de encontro, com toda a violência que aquele capitão corpulento podia manifestar, no rosto de Astradi. O soco arrancou-lhe um dente e o derrubou quase inconsciente.

 – Escute aqui seu amotinado filho de uma prostituta – urrou Roger – Você ainda está respirando por ter me poupado de enfrentar dois motins, mas não pense que vou me esquecer que você também tinha planos contra mim. Por mais que eu seja invencível dentro do meu novo navio, não posso deixar ratos como você impregnando a mente dos meus tripulantes.

Roger pegou sua grande cimitarra e colocou nas brasas do grande engradado de ferro que servia de tocha. Astradi tentou se levantar, mas foi imobilizado por outros tripulantes. Um deles tirou a bota esquerda de Astradi e subiu a calça até o joelho.

– Nós tínhamos um acordo – protestou Astradi com desespero, tentando se libertar.

– Não faço acordo com traidores.

Roger puxou a cimitarra incandescente, se aproximo perna de Astradi e desferiu três golpes até lhe amputar a perna. Em meio aos gritos ensurdecedores do primeiro imediato o capitão encostou a lâmina, ainda com o aço alaranjado pelo calor na ferida para cauterizar. A dor foi tanta que o primeiro imediato caiu inconsciente. Por fim, Roger se voltou para os outros piratas que seguravam Astradi e disse:

– Diga aos homens desse cão, que eles podem me servir ou seguir o mesmo destino dos outros amotinados.

Roger seguiu com alguns tripulantes para o novo navio. E logo que pisou nas madeiras da embarcação dourada, Roger se sentia diferente, mais revigorado, mais forte. Talvez fosse apenas o entusiasmo do capitão, mas para ele era o poder do navio lhe abençoando. Desde pequeno ele ouvia as histórias desse barco, e para uma criança que foi criada nos mares, aquele navio era o desejo de todos que tinham fé nos deuses e lamentavam sua partida.

– Você – disse Roger para o tripulante que se preparava para fazer a travessia entre os navios – Reúna um grupo e verifiquem todos os compartimentos deste navio – ordenou.

– O que faremos com ele capitão? – perguntou um dos piratas apontando para Astradi.

– Deixe-o aí, mais tarde irei fazer ele o outro traidor de exemplo para quem ousa tramar contra mim – rio com escarnio o capitão.

Enquanto os piratas se espalhavam pelo convés, Roger se dirigiu ao leme da embarcação, ele estava maravilhado com a beleza daquele navio. Todos os entalhes, dos mais robustos aos pequenos, emitiam brilhos dourados como moedas de outro em um baú de madeira. As velas eram brancas, mas reluzia o mesmo brilho dourado através dos símbolos antigos estampados nelas.

No Santuário Vermelho, um pirata se esgueirou entres seus colegas, que ainda admiravam a beleza do navio lendário, até Falcor.

– Senhor, precisa sair daqui.

– Bor! – disse Falcor com espanto. Pensei que estivesse morto como os outros.

– Eu e alguns poucos conseguimos nos safar, mas a maioria dos nossos estão presos aguardando a execução.

– Mas eu vi Astride jogando os homens ao mar.

– Aqueles eram os que iriam soltar o bárbaro. Não se preocupe chefe, estamos aqui para te ajudar.

– Obrigado Bor, mas não a nada o que possamos fazer agora.

Ao lado dos dois, Talnor balançava suas correntes, olhando para Bor.

– Mesmo que eu te solte bárbaro, para onde você iria.

Mas Talnor insistia, chacoalhando as correntes.

– Ele deve ter um plano. Nos solte Bor.

O pirata obedeceu Falcor. Talnor esfregou os pulsos marcados pelos grilhões, mexeu os braços e se esticou como urso selvagem. Agora solto e de pé, Falcor conseguia ver o quanto aquele bárbaro era alto. O bárbaro encarou os dois piratas e apontou para as velas do Santuário Vermelho e depois para o lado oposto da embarcação dourada.

– Nós não conseguiremos guiar o barco, mesmo que eu solte os meus homens, Roger está em maior número aqui – disse Falcor.

Talnor insistiu apontando para as velas e depois para o mar afora. Em seguida apontou para uma de suas tatuagens no braço esquerdo, para uma imagem peculiar. Diferente dos símbolos rústicos no corpo do bárbaro, aquilo era algo estranho. Parecia uma forma vaga que se confundia com outros símbolos que a rodeavam, mas Talnor apontou para uma região especifica da imagem. Então ficou assustadoramente claro para Falcor e Bor, a imagem representava uma criatura grotesca, magra, com uma grande boca incomum com olhos minúsculos. Qualquer um que não estudasse atentamente aquelas tatuagens, jamais notaria tal ser nefasto. No entanto, agora estava clara a visão daquele monstro e por mais que fosse só um desenho, ele parecia tão real quanto o navio da lenda. Falcor e Bor ficaram atônitos tentando afastar a imagem verdadeira da criatura que parecia invadir suas mentes.

– O que é essa coisa? – perguntou Bor engolindo em seco.

Talnor apontou para a criatura em seu braço e por fim apontou para a embarcação dourada.

No navio dourado, Roger sentia a emanação do calor que vinha dos entalhes brilhantes. Seus olhos refletiam a satisfação e em sua mente ele fantasiava com  as conquistas que aquele navio podia proporcionar. Ele gritou uma ordem para que o Santuário Vermelho fizesse um disparo para testar se a lenda sobre a indestrutibilidade do navio era verdadeira. Com certa relutância os piratas responsáveis pela artilharia fizeram o disparo. A explosão da bola de canhão ressoou como se tivesse atingido o metal. Mas o disparo não fez nenhum arranham no madeirame dourado.

Roger ria com muito prazer, após anos acreditando nas lendas, finalmente ele conquistara o seu sonho, e agora ele poderia ser um deus vivo no novo mundo que aos poucos perdia a crença e a devoção dos poderes divinos. Roger iria provar que as lendas e histórias não eram apenas contos ou objeto de manipulação dos velhos sacerdotes.

– Venham conhecer a sua nova casa seus vermes – gritou Roger para a tripulação no Santuário Vermelho.

Aos poucos os Piratas do convés migravam de um navio para outro, mas um grito seguido de algo sendo arremessado ao mar rompeu a animação dos piratas. Todos olharam para a proa na direção do grito. E lá uma luz azul avançava furiosamente em direção aos piratas. Talnor com suas tatuagens reluzentes em contraste com o brilho das tochas no Santuário Vermelho, correu ferozmente com duas cimitarras na mão cortando e esquartejando qualquer pirata em seu caminho. O gigante era implacável, cada espadada era desferida com a força de um urso imenso e seus olhos negros injetados de sangue clamava pelo calor da batalha. Mas os piratas ainda estavam em maior número e outros que estavam na embarcação dourada voltavam com a coragem revigorada. Porém, enquanto saltavam da embarcação dourada, o Santuário Vermelho inçou as velas e zarpou. De longe Roger viu Falcor dando ordens para os traidores que estavam presos.

– O que faremos Capitão? – disse um pirata próximo a Roger.

– Será uma pena destruir meu velho Santuário, mas essa é uma ótima oportunidade para testar o meu novo Santuário Dourado. – disse Roger com um enorme sorriso no rosto. – Traga os homens que caíram no mar – e rugiu como um leão para os seus tripulantes abordo. – Enquanto a vocês, pragas dos mares, liberte a fúria divina que esse navio pode proporcionar. Que eles sintam a ira do novo deus vivo.

No Santuário Vermelhos, após um massacre de lâminas proporcionado pela selvageria do bárbaro, os piratas começavam a largar as espadas, intimidados pela fúria de Talnor que estava banhado com o sangue dos que ousaram enfrentá-lo. As tatuagens azuis junto as machas vermelhas que cobriam seu corpo o deixaram com um aspecto sobrenatural, como um avatar da fúria divina encarnada. Os mais supersticiosos se atiraram ao mar e outros apenas se renderam.

Sem mais ameaças Talnor caminhou até o leme, todos os piratas leais a Roger e a Falcor deram passagem. Falcor o encarava preocupado com o perigo iminente da embarcação dourada que começara a se mover de encontro ao Santuário Vermelho.

– O que faremos agora? – perguntou Falcor.

Sem hesitação ou empatia, Talnor afastou bruscamente Falcor do leme e tomou o comando do navio deixando-o totalmente de costa para a embarcação dourada. Os piratas o encaravam com temor. Talnor encarou todos com seus olhos negos como o espaço sem fim e apontou para as velas. Não precisou mais do que esse gesto para fazer toda a tripulação obedecê-lo de colocar o Santuário Vermelho a toda velocidade. Os corações de todos os tripulantes foram tocados pelo terror da presença daquele homem, pelas habilidades de combate que demonstrou e por sua presença de liderança inata.

– Você acha que conseguiremos escapar? – perguntou Falcor temendo contrariar o bárbaro.

Talnor o encarou, e Falcor viu naquele semblante selvagem toda a confiança que o Bárbaro tinha em suas decisões. Mas o segundo imediato, ainda temendo a ira de Roger e olhou na direção da embarcação dourada esperando o pior. Mas o que Falcor viu o deixou ainda com mais medo.

O pirata que nunca testemunhou nada do antigo mundo dos deuses, agora estava assustado por observar coisas que só aconteceriam em sonho efêmeros que se perdiam na escuridão assim como o brilho do navio dourado havia dissipado.

Das entranhas do navio maldito passos pegajosos arranhavam as madeiras douradas que aos poucos se revelam podres. Os piratas lá com olhos brilhantes encaravam as estrelas sonhando e acreditando no fantástico mito daquela embarcação vinda dos deuses. Roger, estático segurando o leme sonhava com sua divindade e com o futuro glorioso que sempre desejara, mas se seus olhos iluminados pudessem enxergar além da ilusão, veria o dono das gélidas e pegajosas mãos que segurava seu pescoço.  

Fim.


Artistas:

Ilustração da capa: @jefflourenso

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